Nesta
celebração em que felizmente estamos, permiti que insista em dois pontos
essenciais, para que o Natal nos continue a surpreender: primeiro, eram pastores, os chamados
ao Presépio; segundo, era de noite que tal acontecia e é de “noite” que
continua a acontecer – mesmo que seja dia. Fixemo-nos na frase evangélica:
«Havia naquela região uns pastores que viviam nos campos e guardavam de noite
os rebanhos.»
É certo que a
temos na memória e não a esquecemos nos nossos presépios, onde não faltam
pastores e ovelhas junto do Menino recém-nascido. Mas também aqui se verifica a
perenidade do que nos foi transmitido.
Lembremos
que se tratava de pastores, gente pobre e pouco conceituada na altura, vivendo
no campo e tratando de animais. Mas lembremos igualmente que o próprio Deus se
revelara na tradição bíblica como “pastor” do seu povo; e mesmo Jesus se
apresentou depois como o “bom pastor”. Bom pastor, com todas as referências que
faz ao conhecimento das suas ovelhas, uma a uma, à procura das que se desgarrem
do rebanho e à defesa de todas, face a qualquer agressão que surja.
Ainda que
pobres de muitas pobrezas, ou exatamente por isso, eram pastores os que ouviram
o anúncio angélico. E não foi certamente por acaso, antes requerendo alguma
coincidência na atitude que devemos ter. Aqueles pastores dos arredores de
Belém faziam-se parábola do que ali sucedia – de Deus para o mundo e do mundo
para Deus.
Também aqui
as personagens evangélicas se tornam exemplares e motivadoras para nós. O
anúncio é dirigido aos que guardavam rebanhos no campo. – Não dirá isto alguma
coisa sobre a qualidade dos destinatários, precisamente os que hoje guardam e
cuidam dos outros?!
Fica a
pergunta, mas adianto alguma resposta. Estou convicto de que agora mesmo, neste
ano da graça de 2022, o Natal está a ser muito especialmente vivido por quem se
preocupa com os outros e os acompanha e protege. Seja em situações de guerra
aberta, como acontece na devastada Ucrânia e noutras partes do mundo; seja em
situações de guerra surda, que endurece os corações onde tudo afinal começa, ou
se resolve. Seja como for, o Natal acontecerá de verdade onde houver quem se
disponha a cuidar de quem precisa.
É assim que
a nossa cidade tem esta noite tantos Presépios quantos os lugares e situações em
que haja bons pastores dos outros: em casas, hospitais ou mesmo ruas, onde o
Menino nos espera em quem carece de algo, física ou espiritualmente que seja.
É bom
assinalar o Natal com figurações a propósito, que lembrem o que aconteceu e
festejem o que nos foi dado com o nascimento de Jesus. É indispensável que o
celebremos, como estamos a fazer aqui, para agradecer a Deus a salvação que
assim começou, tão esperada que fora – e continua a ser aonde o seu anúncio
ainda não chegou, ou já foi esquecido. Mas tudo isto se há de tornar em missão,
concreta e caso e caso, alargando o cuidado daqueles pastores de antanho pelos
rebanhos que ali guardavam, noite adentro.
Também
esta é uma referência a reter e muito a sério. Coincide bem com o modo de ser divino, que das
trevas fez brilhar a luz e mais se manifesta no recôndito dos corações do que
nos clarões que estonteiam.
Assim no
relato da criação, quando “a luz foi feita”. Assim com Abraão, quando Deus lhe
levantou os olhos para as miríades de estrelas que pontuavam de luz o céu
noturno. Assim com Moisés, quando saiu do Egito na primeira Páscoa que foi.
Assim, Bíblia fora, até àquela noite em que Jesus revelou a Nicodemos o porquê
do seu Natal e de tudo o mais: «Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu
Filho Unigénito, a fim de que todo o que crê nele não se perca, mas tenha a
vida eterna» (Jo 3, 16). Tudo prenúncio
da noite em que do sepulcro transbordou a vida do Ressuscitado!
Não foi algo
de meramente circunstancial, aquela noite em Belém. Trata-se, isso sim, duma
condição para vivermos o Natal de Cristo e quanto ele nos traz. Trata-se de
acolher o Emanuel, que quer dizer “Deus Connosco”, estando nós também com Ele, no
seu modo de ser e acontecer, geralmente discreto, muito discreto mesmo.
Requer um
anoitecer de tudo quando nos distraia. Requer disponibilidade e concentração
totais, desfazendo no nosso espírito quanto não seja Deus e a sua manifestação
em Cristo: palavra, gesto e rosto, pouco a pouco desvendado.
Aliás, Jesus
também rezava de noite, como neste passo evangélico: «Naqueles dias, Jesus foi
para o monte fazer oração e passou a noite a orar a Deus» (Lc 6, 12). Realizava na terra o diálogo que eternamente mantém com
o Pai. Diálogo oculto aos nossos olhos, ainda que nos chegue pelo Espírito que derramam.
É um ponto
importante e uma advertência séria. Importante, porque as coisas, e sobretudo
as pessoas, são muito mais do que parecem e só com muita concentração lhes
captamos a verdade. Assim em relação aos outros e sobretudo em relação a Deus.
E uma
advertência séria, pois corremos o risco de viver exteriormente estes dias,
distraídos do essencial que nos oferecem. Do que oferecem, sim, mas apenas a
quem anoitece os olhos para vislumbrar o Presépio.
Creio
que, pastoralmente falando, é uma das maiores urgências que temos, esta de nos educarmos para uma
atitude contemplativa, que feche por um tempo os olhos do corpo e abra os da
alma para a luz que desponta.
Não é sem
preparação e trabalho que nos tornaremos capazes de adorar a presença
sacramental de Jesus eucarístico, qual Natal continuado, como cantou São João
da Cruz: «Bem eu sei a fonte que mana e corre, embora seja noite […] E esta
eterna fonte está escondida em este vivo pão a dar-nos vida, embora seja
noite».
Convenhamos
que, se “orar é falar com Deus”, temos muito mais para ouvir do que para dizer…
E mais para ver com os olhos da alma do que apenas com os do corpo, tão distraídos
geralmente. Se aprendermos isto em relação a Deus, também o faremos em relação
aos outros, realmente ouvidos e verdadeiramente vistos. Os outros, em quem o
Natal de Cristo continua, à espera de quem o divise na noite.
Talvez por
isso, entre as várias Missas de Natal, seja esta particularmente tocante. Toda a
tradição mística insiste no motivo, da “noite”, que é necessário fazer em nós,
para que Deus amanheça ao nosso olhar profundo. Logo São Paulo, que nos alertou
para a necessidade de passarmos do visível ao invisível e finalmente
entrevermos o que importa: «Não olhamos para as coisas visíveis, mas para as
invisíveis, porque as visíveis são passageiras, ao passo que as invisíveis são
eternas» (2 Cor 4, 18).
E o próprio
Cardeal Newman, hoje nos altares, foi nesses termos que cantou a sua conversão,
caminhando como os pastores ao encontro do Menino Deus: «Luz terna, suave, no
meio da noite, leva-me mais longe…» Assim foi e lá nos espera, em Natal
alcançado.
Prossigamos
então, neste caminho aberto, mesmo quando obscuro. Quando desejamos um “santo”
Natal, confessamos que é de Deus e necessariamente ao seu modo. Como foi então
e há de ser agora. – Como acontecerá com a Jornada Mundial da Juventude, pela
qual sempre rezamos, e será “Natal” para muita gente, mesmo em agosto,
compartilhando Cristo vivo pelas mãos da Virgem Mãe!
Sé de
Lisboa, 25 de dezembro de 2022
+ Manuel, Cardeal-Patriarca