domingo, 25 de dezembro de 2022

Homilia na Solenidade do Natal do Senhor

 

  

Viveremos dias ultimados

Permiti, caríssimos, que me fixe numa frase essencial, há bem pouco ouvida. Dela tirarei dois pontos realmente finais: Que se conclui em Cristo tudo o que Deus tem para nos dizer de si próprio; e que assim mesmo se ultima o tempo todo, como criação realizada. A frase é esta: «Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos Profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu Filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo.»

Fixemo-nos neste começo da Carta aos Hebreus. E admiremo-nos com o facto de nas primeiras gerações já se conseguir enunciar em tão poucas palavras o essencial da doutrina cristã, que aprofundamos desde então. Especialmente o sentido global que contém, tão importante agora para ultrapassarmos desvios ou exclusivismos que o Evangelho de Cristo não permite.

A Carta é escrita especialmente para aqueles judeus que acreditaram em Jesus como o Messias anunciado pela tradição profética. Não mudavam propriamente de religião, antes a reconheciam completada por tudo quanto Jesus fizera e dissera. Não esqueçamos que Ele próprio não dispensava a Lei e os Profetas, mas lhes dava pleno cumprimento: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição» (Mt 5, 17).

Foi também assim que os cristãos herdaram e honraram tudo o que os antigos crentes tinham transmitido e passado a escrito no que chamamos Antigo Testamento. Também a partir daí entenderam a vida de Jesus, o porquê do seu nascimento e o sentido redentor da sua morte, como Emanuel primeiro e como Servo de Javé depois.


Também continuamos a rezar os salmos, como Jesus fazia e nós com Ele prosseguimos. Dores e alegrias, medos e expetativas, pessoal ou coletivamente expressos na centena e meia de salmos que rezamos, tudo vemos à luz de Cristo, para nos revermos em Deus, que os inspirou. Tudo é humanidade no drama da salmodia e tudo pode ser salvo assim rezado.

Em todo o percurso bíblico houve progresso, de episódios situados em cada tempo e espaço para os significados mais amplos que ganharam depois. Como quem sobe os degraus da mesma escada até chegar ao seu topo e sem saltar nenhum.

Reconhecemos ainda, que tendo Deus falado muitas vezes e de muitos modos ao antigo povo bíblico, a sua voz chegou também a outros e até pelos profetas, como foi com a viúva de Sarepta e Elias, ou com o sírio Naamã e Eliseu.

Trechos como estes, não são únicos na tradição veterotestamentária e continuaram com Jesus, que chegou a elogiar no centurião romano uma fé maior do que entre os seus: «Em verdade vos digo: Não encontrei ninguém em Israel com tão grande fé! Digo-vos que, do Oriente e do Ocidente, muitos virão sentar-se à mesa do banquete com Abraão, Isaac e Jacob, no Reino do Céu…» (Mt 8, 10-11). A fé, sendo virtude teologal, é já comunicação divina. E o Natal de Jesus não tem fronteiras.

Detive-me aqui, porque, como o Papa Francisco tem insistido, é justo e necessário reconhecer que Deus não está ausente de tudo quanto existe de mais autêntico nas várias tradições humanas. A tradição bíblica, que herdamos e prosseguimos, exatamente pela grande humanidade que transporta, mesmo nas contradições que não esconde, é uma história padrão onde todas as outras podem encontrar acolhimento e campo aberto de diálogo e caminho em comum. Até certo ponto, é verdade; mas no ponto certo onde nos reencontramos como criação divina, presente em cada um, venha donde vier.

Lembremos como várias dessas outras tradições foram incorporadas no texto bíblico e, mesmo quando reinterpretadas, não foram dispensadas. Ou como São Paulo se aproximou da moral estoica, para a retidão das condutas, ou citou poetas gregos no seu discurso aos atenienses, para melhor falar do Deus de todos.

Na cidade e no tempo em que vivemos, creio terem lugar considerações deste género, rumo a uma convivência em que se respeite e admire a contribuição de tanta gente, com o que nos traz de melhor, em humanidade alargada. Creio que o Natal de Cristo também passa por aí.

Reparemos, a propósito, que o trecho da Carta aos Hebreus diz que «Deus nos falou por seu Filho, a quem fez herdeiro de todas coisas e pelo qual também criou o universo». Nada lhe é estranho, portanto, no que à criação diz respeito. Esta é a base comum em que Jesus a situa e inteiramente perfaz. Podemos dizer que é o lugar do seu Natal, assim completo.


Dizia-nos também o texto da Carta aos Hebreus que “estes dias são os últimos”. Não tenhamos medo da frase, pois não se trata de tempo interrompido, mas sim realizado, nas mais profundas expetativas do coração humano.

Bem vistas as coisas, cada tempo é do tamanho da palavra que o preenche. Palavras ocas dão tempos vazios e mesmo perda de tempo, sabemos bem.

Palavras criativas, em qualquer som que tenham, essas sim, perduram. Vivemos delas no melhor da cultura que subsiste. Por vezes, damos a um tempo o nome de quem nele se expressou, fosse poeta ou músico, fosse filósofo, governante ou cidadão comum. Fosse sobretudo um santo. Tempos definidos por palavras que os demarcam.

Assim de hoje se dirá ser tempo do Papa Francisco, com as suas palavras sempre próximas e dirigidas a quem mais precisa de ser acolhido ou apoiado, como as dedicadas à situação na Ucrânia e noutras regiões devastadas pela guerra, ou referidas à dignidade dos migrantes ou aos problemas climáticos que impedem a sobrevivência das pessoas. Palavras que diz em Roma e nos locais mais problemáticos, sempre que é possível.

Estes dias são os últimos da parte de Deus, porque em Jesus nos diz tudo quanto tem para comunicar de essencial e de Si próprio. Por isso, este Menino é Verbo de Deus e Emanuel, que quer dizer Deus Connosco. Tempo de Deus a preencher o tempo humano, como nos diz Santo Agostinho neste seu passo tão expressivo: «Celebremos o dia feliz, em que o grande e eterno Dia, procedente do grande e eterno Dia, veio inserir-se neste nosso dia temporal e tão breve» (Sermão 185).

Diz também o trecho bíblico que n’Ele todas as coisas foram feitas. Olhemo-Lo então como padrão do que somos e havemos de ser, pois em Jesus tudo foi feito e é refeito, no sentido redentor da sua vinda ao mundo. Jesus é o enunciado final, onde se junta a expressão divina e a grande multiplicidade dos sons em que ressoa.

Em Jesus, como nasceu e viveu, recebemos tudo o que as idades nos trouxeram e continuarão a trazer, no essencial das civilizações e das culturas. A única advertência que lhes fez e fará é a de nunca ultrapassarem a humanidade concreta de cada um para chegarem ao absoluto de Deus. De Deus, que em Si mesmo é comunhão e só na comunhão com os outros se apreende. É esta a verdade do seu Natal. Tudo conflui para Jesus, como as ofertas trazidas de tão longe por aqueles magos que chegaram do Oriente.

Sejamos nós também, hoje e aqui, uma palavra ultimada e oferecida, com verdadeira qualidade cristã, a todos quantos nos procuram nesta cidade cosmopolita de Lisboa ou onde chegar a nossa vida, perto ou longe. A linguagem de Deus é solidária, dita e feita em cada gesto de Cristo e em todos aqueles em quem o seu Espírito trabalha para o bem de muitos.

Precisamos de ouvidos para ouvir deveras o que Deus nos diz no Natal de Cristo. Viveremos dias ultimados, porque nada há a acrescentar onde o amor verdadeiramente aconteça. Rezemos para que assim suceda também com a multidão de jovens de todo o mundo que virão a Lisboa na próxima Jornada Mundial da Juventude. Para que vivam dias tão preenchidos com a experiência de Cristo Vivo, que depois lhes defina a existência inteira e aonde forem.


Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2022

+ Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca

Patriarcado de Lisboa

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