Homilia da Missa de Quarta-Feira de Cinzas e Mensagem para a Quaresma de 2021
Uma Quaresma que nos leve à Páscoa
«Diz agora o Senhor: “Convertei-vos a Mim de todo o coração”. Convertei-vos ao Senhor vosso Deus, porque Ele é clemente e compassivo, paciente e misericordioso». Lembrando tudo o mais – o que cantámos no Salmo, o que ouvimos a Paulo e o Evangelho que ressoa – fixemo-nos hoje no trecho de Joel, escolhido para inaugurar este tempo de graça. Da graça da conversão, ou seja, a que mais importa. Especialmente quando a pandemia nos confina fisicamente, mas não nos fecha o coração.
“-
Convertei-vos ao Senhor vosso Deus!” Enuncia-se num instante e requer
uma vida inteira para se realizar plenamente, de Quaresma em Quaresma,
mais e sempre mais, em totalidade e consequência. Um programa que não se
esgota em quarenta dias, mas com eles há de avançar. Assim mesmo
acompanharemos quantos sofreram e sofrem com a presente pandemia, bem
como os que abnegadamente trabalham para a debelar, no setor da saúde e
na sociedade em geral.
Conversão
que nada tem de abstrato, bem pelo contrário. Para quem aceita a
revelação divina, como em Cristo se conclui, ganha uma dimensão
unitrinitária e caritativa bem definida e precisa.
- De que Deus falamos, para a Ele nos convertermos, em Quaresma autêntica?
Como professamos no Credo, começa por ser “Deus Pai todo-poderoso,
criador do céu e da terra”. Aceitá-Lo assim, significa aceitar-nos a nós
como suas criaturas, correspondendo a este facto basilar, com toda a
consequência espiritual e prática.
Estamos
aqui, porque neste preciso momento Deus nos mantém vivos e nos quer
consigo. Vivos para vivermos e convivermos com os outros e a criação
inteira, tomando-a como obra divina e dom do Criador. É esse o primeiro
mandamento bíblico, convém lembrar: «O Senhor Deus levou o homem e
colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e, também para o guardar» (Gn
2, 15). Mandamento muito mal cumprido, infelizmente, mas nem por isso
olvidável - e muito menos agora, com a urgência ecológica que sobre nós
impende.
A conversão a Deus
criador passa antes de mais por respeitar a sua obra e viver em ação de
graças. É exatamente o contrário da concupiscência destrutiva, que tudo
quer capturar e esgotar em si mesma. Lembremos a magnífica afirmação de
Santo Ireneu, sobre o arco completo duma criação realizada, de Deus para
nós e de nós para Deus: «A glória de Deus é o homem vivo e a vida do
homem é a visão de Deus». Sim, a nossa vida manifesta o poder criador de
Deus, a sua glória. Mas não se conclui nem basta em cada um, antes no
retorno à Fonte comum de tudo e todos, só em Deus contemplável.
Os motivos quaresmais do jejum, da esmola
e da oração, não são meros exercícios ascéticos, aliás presentes na
religiosidade em geral e até além desta. Quando o próprio Jesus nos
recomenda discrição em tudo isso, quer alertar-nos para a exterioridade
que nada resolve e geralmente despista. Sobriedade e partilha,
autenticamente vividas, desprendem-nos de gulas e cobiças que não nos
educam no gosto de Deus, nem nos libertam de egoísmos fatais. Um e
outro, jejum e esmola, levam-nos à oração cristã, como o “Pai Nosso” a
ensina.
Escreve-nos o Papa Francisco, na Mensagem em que nos apresenta esta Quaresma como “tempo para renovar a fé, a esperança e a caridade”: «O jejum, a oração e a esmola – tal como são apresentados por Jesus na sua pregação (cf. Mt 6, 1-18) – são as condições para a nossa conversão e sua expressão. O caminho da pobreza e da privação (o jejum), a atenção e os gestos de amor pelo homem ferido (a esmola) e o diálogo filial com o Pai (a oração) permitem-nos encarnar uma fé sincera, uma esperança viva e uma caridade operosa».
Crer
em Deus criador significa, neste tempo que nos cabe e justamente
preocupa, estar sempre do lado da vida de todos e de cada um,
reconhecendo-lhe o valor absoluto que detém do próprio Deus. E
protegendo-a em todo o seu percurso, do ventre materno à morte natural.
A
inviolabilidade da vida humana é a única garantia da sua defesa, face a
qualquer exceção que, mesmo legalmente autorizada, rapidamente
deslizaria para a respetiva negação. Nesta mesma Quaresma e na sociedade
que integramos, a conversão a Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e
da terra, exige-nos atitudes firmes neste ponto, face a eventuais
disposições legais e quanto à consciência que as examina e supera.
Assim começámos há dois mil anos, aliás com outros, e assim estamos prontos a recomeçar agora, com muitos outros também, confessionais ou não. É uma frente comum de humanidade cuidadora e paliativa. Também neste ponto vale a exortação de São Pedro às primeiras gerações cristãs: «[Estai] sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça; com mansidão e respeito, mantendo limpa a consciência…» (1 Pe 3, 15-16).
Conversão a Deus, nesta Quaresma agora, traduz-se igualmente, retomando o Credo, em acreditar em “Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor». Deus diz-Se e comunica-Se inteiramente em Cristo, sua Palavra incarnada, na humanidade que o sim de Maria lhe deu. Assim mesmo compartilhou a condição humana, sobretudo nos dramas e tragédias que tanto contrariam a criação divina.
“Até à morte e morte de cruz” (cf. Fl
2, 8): Morte e cruz que, sendo nossas, foram por Ele assumidas, para as
preencher com a sua vida. Foi assim que a Palavra criadora se tornou
redentora, redizendo-nos perfeitamente segundo Deus. Por isso
ressuscitou e nos ressuscita agora, no cumprimento batismal de cada um.
Presença
que a nossa conversão reconhece e acolhe na humanidade em que se
alarga. Esclarece o mesmo Evangelho como há de acontecer pela positiva:
«Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber,
era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci
e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo» (Mt 25, 35-36). Se cada um traduzir esta atitude, no que concretamente lhe couber, aí mesmo realizará a mais perfeita Quaresma.
Conversão é também, continua o Credo, a Deus Espírito Santo,
que nos inclui na relação de Cristo com o Pai, em perfeita comunhão.
Espírito que nos fará compreender o que Cristo é e como prometeu:
«Quando Ele vier, o Espírito da Verdade, há de guiar-vos para a Verdade
completa. […] Ele há de manifestar a minha glória, porque receberá do
que é meu e vo-lo dará a conhecer. Tudo o que o Pai tem é meu; por isso é
que eu disse: “Receberá do que é meu e vo-lo dará a conhecer”» (Jo 16,
12-15).
Sim, converter-se a
Deus é aceitá-Lo como Ele próprio se revela: Pai criador, que nos recria
no Filho, em quem inteiramente se diz na humanidade que somos e havemos
de ser; Espírito que nos dá, para que a vida divina seja nossa também.
- Que importante será, se nesta Quaresma deixarmos o Espírito “conduzir-nos ao deserto”, como o fez a Jesus (cf. Mt
4, 1), para mais nos convertermos à palavra do Pai e à sua exclusiva
adoração! Mesmo quando o dia-a-dia nos atém aos espaços habituais –
ainda mais confinados pela presente pandemia –, o “deserto” bíblico
assinala o íntimo lugar das escolhas radicais, onde a liberdade e a
caridade simultaneamente despontam.
Jejum,
esmola e oração, ganham aqui o sentido perfeito. No alimento essencial
que Deus é e oferece, relativizando tudo o mais; na partilha com que
cada um garante o necessário a todos; na oração que nos mantém na
verdade absoluta de sermos de Deus e para Deus. - É assim, só assim, que
esta Quaresma nos levará à Páscoa!
Sé de Lisboa, Quarta-Feira de Cinzas, 17 de fevereiro de 2021
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Recorde aqui o vídeo da transmissão da Missa de Quarta-feira de Cinzas, na Sé:
Patriarcado de lisboa
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