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A Companhia está presente na Ucrânia. Estamos a viver uma guerra de agressão. Nós escrevemos sobre isto nas nossas revistas. Qual é o seu conselho para comunicar sobre a situação que estamos a viver? Como podemos contribuir para um futuro de paz?
Para responder a essa pergunta, temos que nos afastar do esquema
normal de "Chapeuzinho Vermelho": a Chapeuzinho Vermelho era boa e o
lobo era o mau. Aqui não há bons e maus metafísicos, de uma forma
abstrata. Algo global está a surgir, com elementos que estão muito
interligados entre eles. Alguns meses antes do início da guerra
encontrei um chefe de Estado, um homem sábio, que fala pouco, muito
sábio mesmo. E depois de falar sobre as coisas de que ele queria apresentar, disse-me que estava muito preocupado com a maneira como a NATO estava a
mover-se. Perguntei-lhe porquê, e ele disse-me: "Estão a latir às
portas da Rússia. E não entendem que os russos são imperiais e não
permitem que nenhuma potência estrangeira se aproxime deles". Ele
concluiu: "A situação pode levar à guerra". Esta era a sua opinião. Em
24 de fevereiro, a guerra começou. Aquele chefe de Estado foi capaz de
ler os sinais do que estava a acontecer.
Aquilo que estamos a ver é a brutalidade e a ferocidade com que esta guerra está a ser conduzida pelas tropas, geralmente mercenárias, utilizadas pelos russos. E os russos realmente preferem enviar chechenos, sírios, mercenários. Mas o perigo é que só vemos isto, o que é monstruoso, e não vemos todo o drama que está a desenrolar-se por trás desta guerra, que talvez tenha sido de alguma forma provocada ou não impedida. E registo o interesse em testar e vender armas. É muito triste, mas no final é isto que está em jogo.
Alguém pode dizer-me neste momento: mas o senhor está a favor do Putin! Não, não estou. Seria simplista e errado afirmar uma coisa do género. Sou simplesmente contrário a reduzir a complexidade à distinção entre os bons e os maus, sem raciocinar sobre as raízes e os interesses, que são muito complexos. Enquanto vemos a ferocidade, a crueldade das tropas russas, não devemos esquecer os problemas a fim de tentar resolvê-los.
Também é verdade que os russos pensavam que tudo estaria terminado numa semana. Mas calcularam mal. Eles encontraram um povo corajoso, um povo que está a lutar para sobreviver e que tem uma história de luta.
Devo acrescentar também que o que agora está a acontecer na Ucrânia, vemo-lo desta forma porque está mais próximo de nós e toca mais na nossa sensibilidade. Mas há outros países distantes - pensemos em algumas partes de África, no norte da Nigéria, no norte do Congo - onde a guerra ainda está em curso e ninguém se importa. Pensem no Ruanda, há 25 anos atrás. Pensemos em Mianmar e nos Rohingya. O mundo está em guerra. Há alguns anos atrás ocorreu-me dizer que estamos a viver a terceira guerra mundial em pedaços e em bocados. Então, para mim, hoje, a Terceira Guerra com a humanidade que já teve três guerras mundiais num século? Eu vivo a Primeira Guerra na memória do meu avô no Piave. E depois a Segunda e agora a Terceira.
E isto é mau para a humanidade, uma calamidade. É preciso pensar que num século houve três guerras mundiais, com todo o comércio de armas que tem por trás!
Há quatro anos atrás, apenas quatro anos atrás, houve a comemoração do 60º aniversário dos desembarques na Normandia. E muitos chefes de Estado e de governo comemoraram a vitória. Ninguém se lembrou das dezenas de milhares de jovens que morreram na praia naq-vos uma revelação pessoal -, chorei quando vi a idade dos soldados caídos. Quando, alguns anos depois, em 2 de novembro - em cada 2 de novembro visito um cemitério - fui a Anzio, lá também chorei quando vi a idade daqueles soldados caídos. No ano passado fui ao cemitério francês, e os túmulos dos jovens - cristãos ou islâmicos, porque os franceses também enviavam para lutar aqueles do norte da África - eram também jovens de 20, 22, 24 anos de idade. Quando fui para a Eslováquia, fiquei impressionado com o número de mulheres jovens e idosas. Faltava, porém, os homens idosos. As avós estavam sozinhas. A guerra timha levado os seus maridos.
Porque estou a contar-vos estas coisas? Porque gostaria que as vossas revistas abordassem o lado humano da guerra. Gostaria que as revistas mostrassem o drama humano da guerra. É muito bom fazer um cálculo geopolítico, estudar as coisas em profundidade. Vocês devem fazer isto, porque é o vosso trabalho. Mas também procurem transmitir o drama humano da guerra. O drama humano daqueles cemitérios, o drama humano das praias da Normandia ou de Anzio, o drama humano de uma mulher cuja à porta bate um carteiro e que recebe uma carta agradecendo-lhe por ter dado um filho à pátria, que é um herói da pátria... E assim ela fica sozinha. Refletir sobre isto ajudaria muito a humanidade e a Igreja. Façam as vossas reflexões sócio-políticas, mas não descuidem a reflexão humana sobre a guerra.
Vamos voltar à Ucrânia. Todos abrem os seus corações para os refugiados, para os exilados ucranianos, que geralmente são mulheres e crianças. Os homens ficaram para lutar. Na audiência da semana passada, duas mulheres de soldados ucranianos que estavam na siderúrgica Azovstal vieram pedir-me que intercedesse para que fossem salvos. Todos nós somos realmente sensíveis a estas situações dramáticas. São mulheres com filhos, cujos maridos estão a lutar lá. Mulheres jovens e bonitas. Mas eu pergunto-me: o que acontecerá quando o entusiasmo para ajudar passar? Porque as coisas estão a esfriar, quem cuidará dessas mulheres? Devemos olhar além da ação concreta do momento, e ver como vamos apoiá-las para que não caiam no tráfico, não sejam usadas, pois os abutres já estão a circular.
A Ucrânia é perita em sofrer escravidão e guerras. É um país rico, que foi sempre cortado, dilacerado pela vontade daqueles que queriam tomar posse dele para explorá-lo. É como se a história tivesse predisposto a Ucrânia para ser um país heróico. Ver esse heroísmo toca os nossos corações. Um heroísmo que anda de mãos dadas com a ternura! De facto, quando chegaram os primeiros jovens soldados russos - depois enviaram mercenários -, enviados para fazer uma "operação militar", como diziam, sem saberem que iriam para a guerra, foram as próprias mulheres ucranianas que cuidaram deles quando se renderam. Grande humanidade, grande ternura. Mulheres corajosas. Pessoas corajosas. Um povo que não tem medo de lutar. Um povo trabalhador e, ao mesmo tempo, orgulhoso da sua terra. Tenhamos em mente a identidade ucraniana neste momento. Isto é o que nos comove: ver tal heroísmo. Gostaria realmente de enfatizar este ponto: o heroísmo do povo ucraniano. Aquela que está diante dos nossos olhos é uma situação de guerra mundial, de interesses globais, de venda de armas e de apropriação geopolítica, que está a martirizar um povo heróico.
Gostaria de acrescentar um outro elemento. Tive uma conversa de 40 minutos com o Patriarca Kirill. Na primeira parte, ele leu-me uma declaração na qual dava os motivos para justificar a guerra. Quando terminou, eu intervim e disse-lhe: 'Irmão, nós não somos coroinhas de Estado, somos pastores do povo'. Eu deveria encontrá-lo no dia 14 de junho em Jerusalém, para falar sobre as nossas coisas. Mas com a guerra, de comum acordo, decidimos adiar a reunião para uma data posterior, para que o nosso diálogo não fosse mal entendido. Espero encontrá-lo por ocasião de uma assembleia geral no Cazaquistão, em setembro. Espero poder cumprimentá-lo e falar um pouco com ele como pastor.
Que sinais de renovação espiritual o senhor vê na Igreja? Vê algum? Há sinais de vida nova, fresca?
É muito difícil ver uma renovação espiritual usando esquemas muito
antiquados. Precisamos de renovar a nossa maneira de ver a realidade, de
avaliá-la. Na Igreja europeia vejo mais renovação nas coisas espontâneas
que estão a surgir: movimentos, grupos, novos bispos que lembram que há
um Concílio por trás deles. Porque o Concílio que alguns pastores
lembram melhor é o de Trento. E o que eu estou a dizer não é bobagem.
O “restauracisonismo” chegou para amordaçar o Concílio. O número de grupos "restauradores" - por exemplo, existem muitos nos Estados Unidos - é impressionante. Um bispo argentino disse-me que lhe tinha sido pedido para administrar uma diocese que caíu nas mãos desses "restauradores". Eles nunca tinham aceitado o Concílio. Há ideias, comportamentos que nascem de um “restauracionismo” que basicamente não aceitou o Concílio. O problema é precisamente este: que em alguns contextos o Concílio ainda não foi aceite. Também é verdade que leva um século para que um Concílio crie raízes. Então ainda temos quarenta anos para criar raízes!
Sinais de renovação são também os grupos que dão um novo rosto à Igreja através do cuidado social ou pastoral. Os franceses são muito criativos neste aspeto.
Vocês ainda não tinha nascido, mas testemunhei em 1974 o calvário do Superior Geral padre Pedro Arrupe na Congregação Geral XXXII. Naquele tempo houve uma reação conservadora para bloquear a voz profética de Arrupe! Hoje para nós esse Geral é um santo, mas ele teve que sofrer muitos ataques. Ele foi corajoso porque se atreveu a dar o passo. Arrupe era um homem de grande obediência ao Papa. Uma grande obediência. E Paulo VI entendeu isso. O melhor discurso já escrito por um Papa à Companhia de Jesus é o que Paulo VI fez em 3 de dezembro de 1974. E ele escreveu-o à mão. Aí estão os originais. O profeta Paulo VI tinha a liberdade de escrevê-lo. Por outro lado, pessoas ligadas à Cúria de alguma forma alimentaram um grupo de jesuítas espanhóis que se consideravam os verdadeiros 'ortodoxos' e se opunham a Arrupe. Paulo VI nunca entrou neste jogo. Arrupe tinha a capacidade de ver a vontade de Deus, combinada com uma simplicidade infantil na adesão ao Papa. Lembro-me que um dia, enquanto tomávamos café num pequeno grupo, ele passou e disse: "Vamos, vamos! O Papa está prestes a passar, vamos cumprimentá-lo". Ele era como um jovem! Com esse amor espontâneo!
Um jesuíta da Província de Loyola tinha sido particularmente
agressivo contra o padre Arrupe, lembremo-nos. Ele foi enviado a ir a vários
lugares e até mesmo à Argentina, e criou sempre problemas. Uma vez ele disse-me: "Você é alguém que não entende nada. Mas os verdadeiros
culpados são o padre. Arrupe e o padre Calvez. O dia mais feliz de minha
vida será quando os vir pendurados na forca na Praça de S. Pedro". Porque vos estou a contafvos esta história? Para fazer-vos entender como
foi o período pós-conciliar. E isto está a acontecer novamente,
especialmente com os tradicionalistas. É por isso que é importante
salvar estas figuras que defenderam o Concílio e a lealdade ao Papa.
Devemos voltar a Arrupe: ele é uma luz daquele tempo que nos ilumina a
todos. E foi ele quem redescobriu os Exercícios Espirituais como fonte,
para libertar-vos das formulações rígidas dos Institutos Epitome, expressão
de um pensamento fechado, rígido, mais instrutivo-acético do que
místico.
Na Alemanha, temos um caminho sinodal que alguns pensam ser
herético, mas que na verdade está muito próximo da vida real. Muitos
deixam a Igreja porque não confiam mais nela. Um caso particular é a
Arquidiocese de Colónia. O que o senhor pensa sobre isto?
Ao presidente da Conferência Episcopal alemã, dom Bätzing, eu
disse: "há uma Igreja Evangélica muito boa na Alemanha. Não precisamos
de duas”. O problema surge quando o caminho sinodal provém das elites
intelectuais, teológicas, e é muito influenciado por pressões externas.
Há algumas dioceses onde o caminho sinodal está a ser feito com os
fiéis, com o povo, lentamente.
Eu quis escrever uma carta sobre o seu caminho sinodal. Eu mesmo o escrevi, e levei um mês para escrevê-la. Eu não queria envolver a Cúria. Eu fi-lo sozinho. O original está em espanhol, e em alemão é uma tradução. Ali escrevi o que penso.
Seguidamente, a questão da Arquidiocese de Colónia. Quando a
situação era muito turbulenta, pedi ao arcebispo para sair por seis
meses para que as coisas se acalmassem e eu pudesse ver claramente.
Porque quando as águas estão agitadas, não se pode ver claramente.
Quando ele voltou, pedi-lhe que escrevesse uma carta de renúncia. Ele o
fez e deu-ma. E ele escreveu uma carta de desculpas à arquidiocese. Eu o
deixei no seu lugar para ver o que aconteceria, mas tenho em mãos o seu
pedido de renúncia.
O que está a acontecer é que existem muitos grupos de pressão, e sob pressão não é possível discernir. Depois há um problema económico para o qual estou a pensar enviar uma visita financeira. Estou a esperar até que não haja pressão para discernir. O facto de haver pontos de vista diferentes é bom. O problema é quando há pressão. Isto não ajuda. Não creio que Colónia seja a única arquidiocese do mundo onde há conflitos. E eu trato-a como qualquer outra diocese do mundo que experimenta conflitos. Vem-me à mente uma, que ainda não terminou o conflito: Arecibo em Porto Rico. Já faz anos. Há muitas dioceses assim.
Santo Padre, somos uma revista digital e também falamos aos jovens
que estão à margem da Igreja. Os jovens querem opiniões e informações
rápidas e imediatas. Como podemos introduzi-los no processo de
discernimento?
Não devemos ficar parados. Quando se trabalha com os jovens, devemos dar sempre uma perspetiva em movimento, não estática. Devemos pedir ao Senhor de ter a graça e a sabedoria de nos ajudar a dar os passos corretos. Na minha época, o trabalho com os jovens consistia em encontros de estudo. Agora já não funciona mais dessa maneira. Devemos levá-los adiante com ideais concretos, obras, caminhos. Os jovens encontram a sua razão de ser ao longo do caminho, nunca estaticamente. Alguns podem estar hesitantes porque veem jovens sem fé, dizem que não estão na graça de Deus. Mas deixem que Deus cuide deles! a sua tarefa é colocá-los no caminho. Acho que é a melhor coisa que podemos fazer.
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