O modo de Deus acontecer no mundo
Celebremos verdadeiramente o Natal.
Celebremo-lo sem passar depressa demais pelas palavras e pelo difícil
contexto em que o fazemos este ano, tão marcado pela pandemia e as suas
consequências no campo da saúde, do trabalho e da vida em geral.
É
neste contexto que celebramos o Natal de Cristo. Sabemos como se tornou
motivo direto e indireto de outras coisas, legítimas certamente, como a
reunião familiar, as iluminações e as prendas, as saudações e os bons
votos a presentes e ausentes. Ainda bem que assim foi e continua a ser,
embora condicionados pelas atuais restrições. Não se reduza a boa
vontade, que encontra sempre modo de chegar aos outros, pois o coração
vence as distâncias.
Importa,
porém, não deixar que outros motivos diluam ou encubram o que realmente
originou o Natal. Muito menos que o contradigam, como se fizéssemos
deste dia algo diferente do que ele foi.
Natal
significa nascimento – e nascimento de Jesus Cristo. Os Evangelhos da
Infância de Jesus dizem-nos o que aconteceu, no mais profundo desse
acontecer. Estão envoltos em motivos bíblicos, que preenchem o
significado do presépio de Belém. Se bem repararmos, o essencial é ter
sido assim, de modo tão original e interpelante, hoje como então.
A
originalidade do nascimento de Cristo, como admirou na altura e nos
admira agora, interroga-nos a todos e esclarece os crentes sobre aquilo a
que podemos chamar a surpresa de Deus neste mundo.
Reparemos
que há muitos séculos se vinha desenvolvendo na tradição profética de
Israel a expetativa de um Messias (= Cristo), cheio do Espírito de Deus
para anunciar a Boa Nova aos pobres. Assim se apresentou Jesus, anos
mais tarde, na sinagoga de Nazaré (cf. Lc 4, 18). Aliás, entre
os próprios romanos, havia quem anunciasse a chegada duma nova idade do
mundo, coincidente com o Império de Octávio César Augusto…
Grandes
expetativas, mas dificilmente aproximáveis do modo, tão desprovido e
simples, como Jesus nasceu, viveu e morreu. Ou como os crentes O sentem
agora, bem presente nas suas vidas, tão forte como discreto “Emanuel”,
que que dizer “Deus connosco” – proposta permanente e imposição nenhuma.
Deus
connosco, como Deus acontece no mundo e nas vidas. Não O imaginemos
doutra forma, pois só nos veríamos a nós, mais ou menos sonhados e
fantasiados. Fixemo-nos no Presépio e no concreto daquela situação e
respetivos circunstantes.
Creio que esta fixação no presépio de Belém nos ajudará especialmente no momento atual,
com as dificuldades sobrevindas e que a muitos atingem gravemente, por
esse mundo além ou aquém. Contemplado com persistência e devoção, aquele
Menino reflete-se em tantos outros, nascidos ou por nascer, cujas
famílias também não encontram lugar apropriado e capaz. Entrevemo-Lo já,
no seu percurso depois, próximo dos pobres de todas as pobrezas,
inteiramente solidário em palavras e obras.
Mas
tudo começou daquele modo, num lugar recôndito e tão diverso de Roma
com o seu imperador, ou mesmo de Jerusalém com o seu rei. Isto mesmo nos
importa, para sabermos como fazer agora, diante da vida própria e
alheia, como nos toca a todos e a tanta gente pesa.
Se
quisermos realmente celebrar e viver este Natal de 2020, façamo-lo à
única luz daquela noite em Belém de Judá. Aceitemos cada um como sinal
de Deus a aparecer neste mundo, sobretudo nos mais carentes e frágeis. O
presépio onde nasceu pode ser agora a cama dum hospital, ou o leito
doméstico dum doente. A solidão que envolvia aquele reduzido grupo, pode
ser hoje a que entristece tantas pessoas sós e à espera da visita que
tarda ou da mensagem que não chega. Sejamos para os outros os presentes
que o Menino não teve. Neles nos espera, no grande presépio do mundo.
A eterna lição do Natal de Cristo é o modo de Deus nos acontecer.
Convertamo-nos de vez ao modo divino de ser e de fazer. Veio ao nosso
encontro numa pequenez inaudita. Viveu poucos anos num espaço limitado.
Aí mesmo lançou à terra a mais pequena das sementes, que foi sempre
crescendo pelo mundo além. Dois milénios depois, estamos nós aqui,
celebrando e confirmando a força invencível da fragilidade divina.
Nós
aqui, neste templo vetusto. Outros mais longe, onde nem os templos se
podem levantar, ou permanecer seguros. Mas o Natal sempre cresce, com a
força que só Deus lhe garante.
Aprendemos
assim o certíssimo modo de ir resolvendo as coisas, mesmo as mais
difíceis. Chegando ao muito pelo pouco, ao grande pelo pequeno e à
humanidade de todos pela atenção a cada um. Mais do que com grandiosos
projetos e meios formidáveis, as grandes obras começam com grandes
corações. Corações que se fortalecem na medida em que acolhem o Coração
divino. Esse mesmo que pulsou naquela noite abençoada.
Dois
mil anos de Evangelho, nas mais diversas latitudes e circunstâncias,
por vezes bem difíceis como foram e como são, garantem-nos absolutamente
que é assim. Alarga-se continuamente o portal do Presépio de Belém.
Há um ano, o Papa Francisco dirigiu-nos uma belíssima mensagem,
para nos fixar o olhar no Presépio, sem nos distrairmos com motivos que
nos alheiem dele e do seu verdadeiro significado. Este ano, noutro
magnífico texto, apresenta-nos a figura tutelar de São José, que,
adotando Jesus, nos adota também a nós. Assim escreve: «O objetivo desta
carta apostólica é aumentar o amor por este grande Santo, para nos
sentirmos impelidos a implorar a sua intercessão e para imitarmos as
suas virtudes e o seu desvelo» (Carta apostólica Patris corde, conclusão).
São
José acompanha-nos sempre, sobretudo com o seu exemplo, cumprindo uma
missão que o ultrapassava mas não dispensava. Acompanhemos os outros,
como São José cuidou do Menino que Deus lhe confiou.
- Com Jesus, Maria e José, houve e continuará a haver Natal neste mundo!
Sé de Lisboa, 24-25 de dezembro de 2020
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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