terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Homilia na Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, Padroeira de Portugal


“Consagrada pela unidade da Trindade, de cujo louvor Ela está cheia” (Potâmio de Lisboa, séc. IV)

 
A 25 deste mês celebraremos o Natal de Jesus. Poucos dias no calendário, mais ou menos demorados no coração de cada um... Não me refiro à festa exterior, condicionada em tempos de pandemia. Refiro-me ao nosso coração, até coincidirmos com o coração de Deus. É esse o lugar que não dispensa, para aparecer neste mundo. 
Mais uma vez nos admirará a circunstância: num lugar remoto, num simples presépio. Um Menino envolto em panos, quase a anunciar os da sepultura. Uma luz na noite, prenúncio da Páscoa, anos depois. Tudo tão simples, como o acontecer de Deus.
Esse foi o Natal. Esperado há muito tempo, profetizado até, mas surpreendente. Pleno de traços de iniciativa divina, pois a nossa maneira nunca o faria assim. 
Só Deus o preparou. E fê-lo, anos antes e de modo ainda mais oculto, na Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, hoje celebrada. Como se nela criasse uma nova terra, para a humanidade novíssima que em Jesus começou. Mais, bem mais do que o barro inicial em que fomos moldados, Maria foi assim criada e assim se manteve, absolutamente intacta e disponível para o Natal de Deus neste mundo.
Lembremos o dogma, como Pio IX o definiu: «Por uma graça e favor singular de Deus omnipotente e em previsão dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do género humano, a bem-aventurada Virgem Maria foi preservada intacta de toda a mancha do pecado original no primeiro instante da sua conceição» (Bula Ineffabilis Deus). 
Comenta o Catecismo da Igreja Católica, na esteira do Concílio: «Para vir a ser Mãe do Salvador, Maria “foi adornada por Deus com dons dignos de uma tão grande missão” (Lumen Gentium, 56). O anjo Gabriel, no momento da Anunciação, saúda-a como “cheia de graça”. Efetivamente, para dar o assentimento livre da sua fé ao anúncio da sua vocação, era necessário que ela fosse totalmente movida pela graça de Deus.» (CIC, 490). Prosseguindo mais à frente: «… dando o seu consentimento à palavra de Deus, Maria tornou-se Mãe de Jesus. E aceitando de todo o coração, sem que nenhum pecado a retivesse, a vontade divina da salvação, entregou-se totalmente à pessoa e à obra do seu Filho, para servir, na dependência d’Ele e com Ele, pela graça de Deus, o mistério da redenção» (CIC, 494).
Creio oportuno lembrar estes passos, para sabermos do que falamos e corretamente o celebrarmos. São verdades de fé, a que não chegaríamos só por nós. Têm nisso mesmo a garantia divina de serem absolutamente verazes, aprofundando o sentido das coisas e alargando o horizonte das vidas.

Celebramos a Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, Padroeira de Portugal. Celebramo-la sobretudo se lhe acolhermos o significado. E o que significa para nós e nas atuais circunstâncias, com todos os que sofrem, mais perto ou mais longe, por razões de saúde ou falta de meios de subsistência, por agressões físicas ou morais de vária ordem e conflitos que não se preveniram ou tardam em resolver-se. Isto entre pessoas e grupos, ou entre países e etnias. Num mundo em que aumentam os atentados contra a liberdade religiosa e o culto que ela inclui. Num mundo em que falta proteger integralmente a vida humana, sem nunca interromper o seu percurso natural... 
É também um mundo onde muito bem acontece, em termos de solidariedade humana e verdadeiro progresso, como o que encontramos no campo da investigação científica, para debelar a presente pandemia. Ou quando, apesar de extremismos vários, podemos verificar atitudes concretas de cooperação internacional, neste e noutros campos.
Porém, são muitos os conflitos abertos ou latentes, de tal gravidade e persistência que requerem vontades firmes para os resolver na raiz. E a raiz, como é mais que tempo de aceitarmos, está no íntimo de cada um, nesse ponto a que também chamamos “coração”. Um coração que acompanhe o “Imaculado Coração de Maria”, como foi lembrado aos Pastorinhos de Fátima.

O mínimo que podemos dizer é que ninguém foi criado para tão pouco e por vezes tão mau como frequentemente lhe toca. No coração humano persistem aspirações a algo de mais e melhor. Aspiração a uma humanidade nova e mais harmonizada com a criação inteira, a caminho dum destino eterno de que afinal ninguém desiste no mais íntimo de si mesmo.
Pois bem, a solenidade de hoje confirma-nos a certeza de que assim pode ser. Mais ainda, de que tal aconteceu já e definitivamente em Cristo, incarnado em Maria, para tal preparada desde a sua Imaculada Conceição. Diz-nos principalmente como tudo aconteceu a partir de Deus. E exorta-nos a acreditar no Seu poder, como Maria acreditou – Ela, a jovem que era então, na pequena terra da Nazaré da Galileia, ponto minúsculo daquele imenso Império que se espraiava já por três continentes. Guardemos o contraste, para nos convencermos do procedimento divino. Guardemo-lo também, para lhe correspondermos como Maria o fez, vencidos e convencidos pela discreta omnipotência de Deus. Oiçamos também como Ela ouviu: «Não temas… A Deus nada é impossível».
Não era um tempo fácil, aquele. Não é um tempo fácil agora. À luz da solenidade de hoje, demos pleno espaço a Deus e à sua vontade de recriar tudo em Cristo. Livremo-nos da desobediência que nos destrói, desde aquele primeiro “não” que a leitura do Genesis recordou. Digamos inteiramente “sim”, como Maria o disse ao mensageiro celeste: «Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra». Para esse sim foi predisposta desde a sua conceição. Para este sim nos impele o mesmo Espírito, que no batismo recebemos. E assim, só assim, o Evangelho continuará a acontecer.
Disso mesmo estava bem consciente um cristão dos primeiros séculos, ao escrever: «Tendo, pois, tudo já planeado em si mesmo juntamente com o seu Filho, [Deus] permitiu que, até aos últimos tempos, conforme ao nosso desejo, nos movêssemos por impulsos desordenados, arrastados pelos prazeres ilícitos e paixões, não porque se regozijasse de algum modo com os nossos erros, mas tolerava-os; nem porque concordasse com o tempo passado favorável à iniquidade, mas preparava o tempo atual da justiça, para que, durante esse tempo, reconhecendo-nos indignos da vida, em virtude das obras de cada um, agora pela benignidade de Deus, fossemos considerados dignos; e, reconhecendo a impossibilidade de, por nós próprios, entrar no reino de Deus, nos tornássemos capazes pelo poder de Deus» (Carta a Diogneto, IX, 1).

 


O desígnio de Deus a nosso respeito é possibilitar-nos, pela graça batismal, o que aconteceu em Maria, cheia de graça desde a sua Imaculada Conceição. Ouvimo-lo há pouco na epístola: «Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que […] n’Ele nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na sua presença». E o Catecismo esclarece, resumindo vários passos neotestamentários: «O Batismo não somente purifica de todos os pecados, como faz do neófito “uma nova criatura”, um filho adotivo de Deus, tornado “participante da natureza divina”, membro de Cristo e coerdeiros com Ele, templo do Espírito Santo» (CIC, 1265).
Resumamos, se possível. O drama da humanidade, desde que ganhou consciência de si, foi – e continua a ser – a autossuficiência que pretende no que à vida respeita, própria e alheia. Assim pecou originalmente e assim persiste infelizmente. Salva-nos o facto de Deus não desistir de nos refazer em Cristo, com o “sim” de Maria. Para tal foi preparada e a tal correspondeu. Entre o sim de Deus, que a criou imaculada em função de Cristo, e o sim de Maria, que permitiu a sua vinda ao mundo em função de nós, há um nexo absoluto e salvador. Esse mesmo que se repercute nos cristãos, quando o batismo e a vida coincidem.
Há de ser esse o fruto da celebração que fazemos. Seja-nos símbolo e apelo a Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, para uma vida em Deus e para Deus. Com geral benefício, pois “uma alma que se eleva, eleva o mundo”. Contemplemos Maria e saberemos o que havemos de ser. Saberemos como, também através de nós, o Natal de Cristo será a vida de muitos.  

Aclamemo-la aqui, traduzindo as palavras que lhe dedicou há tantos séculos o primeiro bispo conhecido de Lisboa: «Só a Virgem Mãe de Deus […] deve levantar a sua cabeça coroada com seus louros até às nuvens do céu. Que ela seja bendita entre os povos, consagrada mui merecidamente pela unidade da Trindade, de cujo louvor Ela está cheia desde agora e para sempre nos eternos séculos dos séculos» (Potâmio de Lisboa, Epístola ao Bispo Atanásio, 10).

Sé de Lisboa, 8 de dezembro de 2020


+ Manuel, Cardeal-Patriarca

 Patriarcado de Lisboa

Sem comentários:

Enviar um comentário