Homilia da Noite de Natal
Sé Patriarcal de Lisboa, 24 de dezembro 2023
1. Aproximando-nos do mistério que o Natal celebra, e o Presépio retracta, acolhamos o grito imortal, «não temais», proclamado nos campos da Judeia, na noite do nascimento do Salvador, e eternamente entoado ao longo das duras e incertas horas noturnas da história.
Não temais: a força da vida nova que o Menino do presépio oferece, para inaugurar uma nova manhã na vida da humanidade, e de cada um de vós, sem guerras, sem orgulho e sem inveja; uma nova manhã a despontar sobre as noites solitárias de Deus para transformar todas as solidões do mundo.
Não tenhais medo: da força do amor que o Menino quer infundir a todos, para ser, finalmente, o amor, o critério e a medida, da aproximação aos outros, à existência e a todas as criaturas.
Perante o Menino de Belém, não houve e não há, prepotência que resista, nem indiferença que prevaleça, mas sim o singular mistério da assunção da realidade humana por parte de Deus; assume-a para a transformar. Como clamavam os Padres, só o que fora assumido pelo Verbo, será salvo, e foi a realidade de cada um, homem ou mulher; doente ou saudável; rico ou pobre que o Verbo assumiu para a transformar e redimir.
2. Assim, na pessoa do Menino de Belém encontramos o realismo da vulnerabilidade humana, a fragilidade própria de quem, sozinho ou isolado, nada pode, nem sequer sobreviver, mas depende totalmente dos outros.
Em Cristo Menino, contemplamos essa fragilidade própria da humanidade, pelo que a dependência dos outros é o rosto de todas as limitações à autossuficiência. Mas n’Ele estão também presentes as marcas da morte e visíveis os efeitos do pecado. A assunção da natureza humana, pelo Verbo, comporta fazer sua a inevitabilidade da morte, expressa na forma da manjedoira, antecipação da sepultura, e ela própria evocativa da exclusão, por não haver espaço para eles na hospedaria, logo do pecado.
Contudo, o Menino transformou esse lugar de trevas, em fulgor de luz, porque os tornou lugar de alimento e de comunhão, a nova claridade da manhã inaugural da redenção. Ele revela-nos que ninguém foi criado para estar sozinho; e, a partir dessa nascente de vida com os outros, instituiu a comunhão como a máxima realização da condição dos homens, enquanto criaturas, porque os constituiu como Seu próprio Corpo, e fez da comunidade a epifania da sua presença no meio de nós.
No nascimento de Jesus, as fraquezas dos homens assumidas poe Ele, tornaram-se forças construtoras de história.
Hoje, as debilidades que mergulham a humanidade nos calafrios da incerteza e, por vezes, da indignidade exprimem-se em guerras fratricidas, que nem o lugar histórico do nascimento de Jesus respeita. A crescente e alarmante crise ética, está a conduzir ao esvaziamento do rosto cristalino do bem, do bom e do verdadeiro, e vai-nos mergulhando no engano do relativismo e da anarquia…
E, contudo, a certeza de que o Menino de Belém não veio ao mundo apenas trazer exortações de boa conduta moral, mas para assumir as contradições da história, os paradoxos dos homens e as tragédias do mundo revela que a redenção das trevas para alcançar a luz é a vocação de tudo o que existe. Nada vive ou é para a perdição, mas tudo e todos está chamado à Salvação.
3. Em segundo lugar, esta noite está marcada pelo dinamismo do caminho que envolve todas as personagens do evangelho. José e Maria, vieram de Nazaré, da Galileia, até Belém, na Judeia; os Pastores, dos campos da pastorícia, até aos arrabaldes da Cidade; os próprios Anjos celestes desceram das Alturas para as planícies dos arredores de Belém; até o edito de César Augusto, viajou de Roma até à Palestina.
Homo Viator, uma expressão de reconhecimento da natureza do ser humano, enquanto peregrino, na medida em que no caminhar realiza uma substancial parte de si mesmo, seja física, seja espiritualmente. No Menino de Belém, o próprio Deus se faz mendigo, caminhante ao encontro da humanidade. Ele não irrompe no mundo como um dominador todo-poderoso, para, com a mobilização dos Exércitos celestes, conquistar o território do coração dos homens, já ocupado por forças inimigas, adversas à vida e à dignidade da pessoa, e implantar as suas leis de verdade, de amor e de fraternidade. Não! Aparece como um pobre entre os pobres, na periferia de uma cidade periférica, que nem os vizinhos conheciam bem. E, em vez de se impor, propõe-se com a pedagogia da atração. Quer atrair todos a si, e por isso vem como criança, indefesa, débil, mas criança, porque ninguém é indiferente à criança desamparada e Ele, no recém nascido do presépio, quer vencer a indiferença e conquistar os corações, atraindo-os a si, na liberdade, não na imposição.
O Natal, portanto, consagra, definitivamente, a perpetuidade da vinda eterna de Deus até nós como artigo fundamental da nossa fé, porque nos impele a considerar, com a mesma relevância da certeza de que Deus existe, o facto certo de que vem ao nosso encontro, para caminhar e estar connosco.
A vida cristã é caminho para Deus, progredindo no amor e na santidade, e para os irmãos, em atitude de serviço e dádiva no anúncio redentor da Boa Nova, ou na oferta da própria vida para que outros vivam.
4. “Nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador.”, não em berço dourado, mas numa manjedoura, o retrato vivo da discriminação, mas que foram as suas palhas que o acolheram e aconchegaram o seu frágil corpo. Que magnífico panorama de simplicidade, de pobreza e de amor que só faz sobressair a verdadeira e desconcertante riqueza da nossa alegria e da nossa esperança: é o próprio Deus feito Homem; feito um de nós. Cristo irrompeu no tempo para inaugurar um novo tempo do mundo e da vida de cada ser humano.
Do mundo, porque deixou de ser possível conceber o mundo sem Deus, e sem Cristo. Delinear a sociedade ou a história sem Eles é puro engano, porque deturpa a própria verdade da pessoa, enquanto construtora de história e de mundo. O Verbo do Pai fez-Se homem, assumiu um corpo no qual está presente toda a deslumbrante vida da criação, firmando, assim, uma presença perene e indestrutível no próprio mundo. Por isso, o cântico de paz que, naquela memorável noite do Nascimento, o coro dos anjos entoa, continua a maravilhar a história e a vida dos pobres, e a transformar o sentido dos acontecimentos, mesmo dos mais complexos, em pautas de louvor e glória a Deus.
Mas inaugura, igualmente, uma nova e definitiva etapa de vida para cada homem e para cada mulher. De facto, se já não é possível conceber o mundo sem Deus, com maior razão, pela força da união substancial do Verbo divino com a natureza humana, não é possível uma humanidade privada d’Ele. E todos os projetos de sociedade ou de civilização, que prescindiram de Deus, fracassaram.
Cristo o homem novo, que inaugurou a derradeira e definitiva humanidade, centrada no primado do Pai e movida pelo sopro do Espírito. Ele selou uma aliança de amor com cada homem e com cada mulher, de tal modo intensa e íntima que é no seu mistério messiânico que se desvenda o próprio mistério pessoal e existencial de cada pessoa. Pela encarnação, onde está o ser humano, aí está Cristo.
5. Olha para a tua vida, para o teu coração, e vê o quanto Cristo ama estar connosco, por isso veio até nós e entrou para sempre nas nossas vidas. Disponibiliza-te a acolhê-l’O, a seres como os panos que o envolveram e deram aconchego. «Encontrareis um Menino recém-nascido, envolto em panos», advertiram os mensageiros aos pastores, a propósito do nascimento de Jesus em Belém; mas também no Getsémani, na Páscoa (cf Mt 27, 59), o seu corpo será envolvido num lençol.
Nesses panos, estamos nós e está a realidade da nossa condição: somos pano, não linho fino tecido a ouro e ornamentado com pedras preciosas, mas puro e humilde pano; e é assim que o Senhor quer ser envolvido por nós, com a nossa história, às vezes simples e linear, outras complexas e difíceis, e pela nossa condição. Quer que o envolvamos, e nos envolvemos com Ele.
Esse envolvimento constitui o sinal de reconhecimento do Messias «Isto vos servirá de sinal, encontrareis um Menino envolto em panos.»
Caros irmãos, quem sabe se as dificuldades da evangelização, hoje, não esteja na dificuldade de testemunharmos a nossa ligação com Cristo; o compromisso da nossa vida com Ele!? Não basta falar de Cristo, é preciso ser testemunha visível e verdadeira do nosso envolvimento com Ele, para que seja reconhecido como Senhor da história!
† RUI, Patriarca de Lisboa
Patriarcado de Lisboa
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