sexta-feira, 15 de abril de 2022

Homilia na Celebração da Paixão do Senhor

 

 

A resposta de Deus na cruz de Cristo

A sair lentamente duma pandemia imprevista, lembrando os que ela vitimou e confrontados com uma devastadora guerra na Europa, a juntar-se às que persistem noutras latitudes, é caso para perguntar porque estamos hoje aqui e a recordar algo acontecido já tão longe no tempo e no espaço, como foi a paixão e morte de Jesus de Nazaré…
A resposta imediata é uma só: Estamos aqui porque o reconhecemos como Cristo, ou seja, o Messias tão esperado pelo povo bíblico e ainda hoje por quem o não conheça. Messias ou Cristo significa ungido pelo Espírito Divino para nos libertar de todos os cativeiros do corpo e da alma. Assim o sentimos e confessamos nós. É o que significa estarmos aqui e a revelação do seu porquê.
Reconhecemo-lo, nós e para os outros, por graça de Deus. Não como chefe vitorioso à maneira das efémeras vitórias deste mundo, mas com o rosto do servo de Javé, como ouvimos há pouco: «Ele foi trespassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa das nossas iniquidades. Caiu sobre ele o castigo que nos salva: pelas suas chagas fomos curados». Salvou-nos dando a vida por todos e não a tirando a ninguém.
O seu percurso terreno foi como sabemos e a sua paixão foi como acabámos de ouvir. Nada que aparentemente o singularizasse, desde o pequeno perímetro de Nazaré da Galileia, entre a oficina do trabalho que fazia e a sinagoga do culto que prestava, não faltando a um nem a outro. Alguma notícia depois, da estada em Cafarnaum à passagem por outras terras. Falava-se de curas e conversões por ele realizadas, que indiciavam ser o Messias há muito esperado, embora ele pedisse discrição a esse respeito.
Na sua última subida a Jerusalém, começaram por aclamá-lo com “Hossanas ao Filho de David”, mas daí a dias foi preso, torturado e morto, pelo triste conluio de alguns religiosos e políticos e entre os gritos da turbamulta. Crucificaram-no por fim e assim morreu pouco depois, suplicando o perdão divino para os seus algozes. Mas, ainda aí, parecia mais um condenado entre outros que o ladeavam…
Perguntemo-nos então e de novo sobre o porquê de estarmos aqui, tantos séculos passados. Ou melhor, como se tanto tempo passado não conseguisse tirar-nos de ao pé da cruz.
Esta mesma pergunta é já resposta, pois significa admiração – palavra próxima de milagre – e uma admiração única pela atração que sentimos em redor dum crucificado, algo que por si mesmo não nos atrairia jamais, muito pelo contrário.

Cumpre-se assim, hoje e aqui, o que Ele próprio predissera: «Eu, quando for erguido da terra – precisamente na cruz – atrairei todos a mim» (Jo 12, 32). Deixemos que esta atração se imponha agora e ainda mais ao nosso espírito. Coincidamos com o que sentiram os poucos que permaneciam junto daquela cruz levantada, os primeiros a entrever que toda a tragédia humana se concentrava ali e assim mesmo encontrava salvação, porque partilhada pelo próprio Deus.
Tragédia partilhada pelo próprio Deus… Assim continua a ser, como a única esperança que apesar de tudo se entreabre. Como nestas palavras de há poucos dias, proferidas por um sacerdote ucraniano numa igreja de Bucha, entre ruínas e cadáveres: «Só Deus nos deu força para aguentar este inferno. Só Deus me dá força para contar o que aqui vi. […] Aqui, nestas três valas, foram deixados homens, mulheres e crianças, muitas crianças, algumas de colo. Estão aqui centenas de pessoas. Como é possível tanto mal? Como é possível tanta maldade? Meu Deus, meu Deus, ajuda-nos, dá-nos força» (Público, 5 de abril, p. 2).
Estavam junto à cruz de Jesus sua Mãe, a irmã de sua Mãe, Maria, mulher de Cléofas, e Maria Madalena. Duas ou três pessoas de família e uma das discípulas que o tinham seguido. Também um discípulo especialmente referido, que confiou a sua Mãe, pedindo-lhe que a guardasse depois. Eram poucos, mas estavam por muitos mais até hoje, como somos nós, também discípulos, também confiados à sua Mãe e guardando-a na devoção agradecida. Nascia ali a Igreja e assim se há de manter, em redor da cruz e vivendo daquela vida oferecida, como Deus Pai a devolveu. Só por isso estamos aqui, numa razão bastante e maior do que nós, pois só a partir dela nos compreendemos agora, para a testemunhar em toda a parte.
Importa perceber que a missão da Igreja se alarga com os braços da cruz. Braços que chegam até nós, e por nós hão de chegar aos outros. Não como mero emblema de naus de antanho ou de condecorações de agora. Mas como vidas salvas na que Cristo ali nos deu, entregando-nos consigo a Deus Pai e devolvidas pelo Pai a quem nos espera.
O Espírito com que tudo isto acontece manifesta-se hoje em cada vida entregue ao bem dos outros. E pode acontecer assim porque na cruz do Gólgota a humanidade atingiu em Cristo o ponto a partir do qual tudo verdadeiramente se renova.


Traduzindo a antiga frase e assinalando a convicção duradoura, “a cruz permanece enquanto o mundo se revolve”. Ali, onde «inclinando a cabeça, expirou». Expirou, repartindo connosco o mesmo Alento que o movia, para reanimarmos agora tanto desalento que não falta. Aí mesmo, onde a cruz do mundo se apresenta em fomes, pestes e guerras persistentes, Cristo está presente, tomando para si o que nos dói e contando connosco para se aproximar de todos, em cada momento e situação. Por isso estavam os primeiros ao pé da sua cruz e continuamos nós onde ela se apresenta hoje em toda a dor do mundo.
Sim, entre familiares e amigos que sofram no corpo ou no espírito, como em quem não conhecemos e igualmente sofra. Sim, em quem procure casa, sustento, saúde e educação para si e para os seus. Sim, em quem precise de apoio para prosseguir a gravidez e salvaguardar a vida que transporta em si, ou em quem requer companhia e cuidados para não desistir de viver. Sim, em quem tenha de fugir da sua terra, da Ucrânia a tantas outras paragens assoladas pela guerra e a devastação. Sim, em solidariedade plena com quantos sofrem perseguição pelo facto de serem cristãos ou quererem aderir a Cristo: Em todas estes casos, na sofrida concretização de cada um, alargam-se os braços da mesma cruz e encontra-se o mesmo Cristo, que nela nos espera em tantos rostos. E assim mesmo nos salva, quando a correspondência é perfeita.
Por isso estamos aqui, na única razão do atuar divino, como Jesus a revelou um dia: «Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que crê nele não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16).
Acolhamos a resposta de Deus na cruz de Jesus Cristo e convertamo-nos de vez ao amor que nos salva.


Sé de Lisboa, 15 de abril de 2022

+ Manuel, Cardeal-Patriarca

 

Patriarcado de Lisboa

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