domingo, 10 de abril de 2022

Homilia no Domingo de Ramos da Paixão do Senhor

 

 

 O caminho aberto na humildade de Cristo 

 
Caríssimos 

Iniciamos esta Semana Maior de 2022 num tempo difícil para a humanidade, em que os males sempre temidos da peste, da fome e da guerra se traduzem de novo em muitas situações, mais próximas ou mais distantes, mas que são irrecusavelmente nossas, na terra comum de todos.
Principalmente nesta semana, queremos avivar a consciência de que esses males tiveram e continuam a ter resposta da parte de Deus. Sim, de Deus que os compartilha e salva na paixão, morte e ressurreição de Cristo. Batizados em Cristo, continuaremos a ser essa resposta, no mesmo Espírito e em idêntica comunhão com todos. Deus responde como companhia e fonte inesgotável de vida, agora para depois.
Convém sempre, em cada celebração, guardar as palavras da “oração coleta”, que geralmente acentuam o seu sentido particular. A de hoje deu à paixão de Cristo um significado talvez surpreendente. Começava assim: «Deus eterno e omnipotente, que, para dar aos homens um exemplo de humildade, quisestes que o nosso Salvador se fizesse homem e padecesse o suplício da cruz…».
Prestemos toda a atenção a este passo: a encarnação e a cruz são o exemplo de humildade que Deus eterno e omnipotente nos quis dar em Jesus. Modo de dizer que a omnipotência divina não se manifesta como qualquer poder mundano, mas precisamente ao contrário, como entrega de si próprio, acompanhando-nos na fragilidade humana e mesmo na dor mais aguda e imerecida, como foi a de Cristo, que assumiu a de tantos.
Precisamente no “húmus” da nossa humanidade comum. Reparemos como humanidade e humildade se aproximam na grafia e no significado a não perder... Só a omnipotência do amor divino conseguiria tanto, salvando-nos a todos com humildade vitoriosa.
E a oração continuava, pedindo que a mesma humildade que venceu em Jesus nos assegure a nós a sua vitória pascal. Uma humildade que vence no contraste com os poderes impositivos daquela ou desta altura, esses sim passageiros e derrotados como acabam por ser…: «Fazei que sigamos os ensinamentos da sua paixão, para tomarmos parte na glória da sua ressurreição.»

Trata-se duma via-sacra a percorrer com Jesus, como ele a percorreu connosco e continua a percorrer nos mais árduos caminhos das vidas individuais e coletivas. Se o fizermos, chegaremos aonde Ele chegou e alargaremos no mundo a sua Páscoa. É o que celebramos agora e nos incumbe sempre.
Deus salva porque nos acompanha onde mais precisamos de ser acompanhados. Pouco mais de trinta anos da vida de Jesus neste mundo, mostram-nos como foi e como continua a ser. Como naquela altura aconteceu, nascido pobre em Belém, refugiado a seguir no Egito, humilde e trabalhador na oficina de Nazaré, calcorreando depois as margens do lago e os caminhos da Galileia à Judeia, sem evitar sequer os da Samaria, ou saindo de Israel para terra de gentios: eis Deus humanado e convivente, até na própria morte, a que não se eximiu por fim.
Assim continua a ser, agora e ressuscitado, multiplicando os sinais da sua presença no mundo, também e sobretudo junto dos mais pobres de todas as pobrezas, ou oprimidos de todas as opressões. Sinais da sua presença são os que, movidos pelo Espírito que nos deixou, lhe reproduzem os gestos salvadores e ecoam a sua voz consoladora, daqui até à Ucrânia e da Ucrânia a todos os cenários de muitos dramas e tragédias que não faltam por esse mundo além, ou aquém.
Muito significativo é o facto de entre tantos deuses e imperadores daquela altura, com o seu cortejo de pompas e opressões, os primeiros cristãos terem descoberto e cantado o inaudito contraste da humildade de Cristo. Ouvimo-lo há pouco, num hino bem precoce, que havemos de retomar frequentemente, para que ele ressoe nas nossas vidas e atitudes. «Cristo Jesus, que era de condição divina, não se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si próprio. […] Por isso Deus o exaltou e lhe deu o nome que está acima de todos os nomes…». Foi este o caminho da Páscoa de Cristo e é o que nos dispomos a seguir também.
Foi este o caminho da humildade de Deus e só este pode ser o nosso, para que a Páscoa continue a acontecer. Deus é sempre humilde e assim se diz em Cristo, sua palavra encarnada. Assim como na criação que nos mantém vivos Deus é tão discreto que corremos o risco de não O aperceber, assim na redenção com que nos recria em Cristo, tudo é humilde porque tudo é dom. Dom que não se impõe mas oferece, para que todos tenham vida e vida em abundância - e apenas isto procurando.

Tiveram de aprendê-lo, os primeiros seguidores de Jesus. Tiveram de o descobrir como servo, para assim o adorar como Senhor. E Senhor porque capaz de se entregar e de vencer precisamente desse modo. Ouvimo-lo há pouco no Evangelho: «Levantou-se também entre eles uma questão: qual deles se devia considerar o maior? Disse-lhes Jesus: […] O maior entre vós seja como o menor, e aquele que manda seja como quem serve. Pois quem é o maior: o que está à mesa ou o que serve? Ora Eu estou no meio de vós como aquele que serve”».
Tiveram de o aceitar assim e de o imitar depois. Um depois que dura até agora e que nos propomos retomar nesta Páscoa. Somos Igreja de Cristo no mundo, quando lhe retomamos a feição, mais conforme e verdadeira. Para que Deus nos reconheça como seus e a Páscoa de Cristo se difunda.
E se difunda agora, quando entre nós tantos refugiados anseiam pela recuperação da sua terra e pela vida dos seus. Os gestos de comunhão espiritual e solidariedade concreta que se têm somado nestas trágicas semanas, mostram o melhor do coração humano e reabrem o futuro que a guerra quis fechar. São prenúncios daquela vida que ressuscitou dum sepulcro que parecia fechado. Fulguram a Páscoa que Cristo garante. Na humildade e no serviço, vivamos uma semana realmente “maior”.


Sé de Lisboa, 10 de abril de 2022
+ Manuel, Cardeal-Patriarca

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