O Natal da humildade divina
De quanto ecoa na Liturgia do Santo Natal, retomo a frase que resume tudo o mais: «O Verbo fez-se carne e habitou entre nós».
Deus
comunica-se inteiramente na humanidade que é a nossa, de modo tão
manifesto e concreto como aconteceu em Cristo, do presépio à cruz. Não O
procuremos doutro modo, senão neste em que nos procurou a nós. Por isso
Cristo pôde responder mais tarde a um discípulo que lhe perguntou por
Deus Pai: «Há tanto tempo que estou convosco e não me ficaste a
conhecer, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como é que me dizes, então,
mostra-nos o Pai? Não crês que Eu estou no Pai e o Pai está em mim?» (Jo 14, 9-10).
Por
“carne” entende a Bíblia a nossa condição humana, na fragilidade que a
carateriza, com as possibilidades e limites que tem. Condição em que
Deus se expressa para ser visto, ouvido e entendido por cada um de nós.
Deus Pai diz-se em Deus Filho, pelo Amor que os une e nos quer incluir
também.
Abeirar-se do mistério
da Trindade divina e da Encarnação do Verbo é tocar no âmago religioso e
existencial de Deus e de nós próprios. Religioso porque nos liga a
Deus, como Jesus também disse: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida.
Ninguém pode ir até ao Pai senão por mim». Existencial e nosso pelo que
diz logo a seguir: «Se ficastes a conhecer-me, conhecereis também o meu
Pai. E já o conheceis, pois estais a vê-lo» (Jo 14, 6).
Reconheçamos
então a Deus como se diz em Jesus Cristo, Verbo de Deus incarnado.
Fixemo-nos agora no Menino do Presépio, neste nascimento tão diferente
do que seria de esperar. Por mais que a devoção e a arte embelezem a sua
representação, trata-se irrecusavelmente de um Menino deitado numa
manjedoura. Não houve berço doirado naquele momento em Belém.
O que na verdade esplende é a verdade de Deus, que se revela em humildade absoluta.
O Natal pede-nos conversão ao modo divino de ser e acontecer entre nós.
Pede-nos a presteza dos pastores e a demanda dos magos. Ambos
prenunciaram aquele “deixaram tudo e seguiram-no” (cf. Lc 5,
11) com que se adere a Cristo, hoje como então. “Tudo” pode referir-se a
bens materiais que requerem partilha com quem precisa, ou a outros
motivos que nos impedem de O aceitar como unicamente se manifesta.
Sigamo-Lo como Ele é e não como o imaginaríamos nós.
Não
se trata de voluntarismo, trata-se de nos encontrarmos com Deus tal
como Ele se encontra connosco na Palavra viva que nos dá em Cristo, ou
seja, em humanidade vivida e convivida.
Não
especulemos sobre Deus. Seria perda de tempo e só nos encontraríamos a
nós. Oiçamo-lo como Ele se disse e vejamo-lo como Ele se revelou em
Cristo, na “carne” de Cristo, tão próxima e sensível que foi. A
encarnação do Verbo tanto nos revela os sentimentos de um Deus que se
aproxima de nós, como nos demonstra o que havemos de ser, para nos
aproximarmos de Deus.
Está
connosco onde precisamos de ser acompanhados, na nossa fragilidade, que
fez sua. Todas as tradições evangélicas o referem sem sombra de dúvida.
Do Natal à Cruz, o Verbo de Deus diz-se na carne que somos.
Teve
sede, quando «cansado da caminhada, se sentou na borda do poço» (Jo 4,
6) e pediu de beber à samaritana. Teve fome, como neste passo, tão
preciso e tão corrente: «Saiu da cidade e foi para Betânia, onde
pernoitou. Logo de manhã cedo, ao voltar para a cidade, teve fome» (Mt
21, 18). E, como sentiu sede e fome, também reparou na fome dos outros,
quando disse: «Tenho compaixão desta gente, porque há já três dias que
está comigo e não tem que comer» (Mt 15, 32).
Isto
quanto às necessidades corporais. Mas igualmente nosso e bem nosso,
quanto aos sentimentos genuínos. Assim, quando se alegrava por ser
entendido e bem entendido: «Jesus estremeceu de alegria sob a ação do
Espírito Santo e disse: “Bendigo-Te, ó Pai, porque escondestes estas
coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelastes aos pequeninos”» (Lc
10, 21). Ou, quando se amargurava na tribulação: «… começou a
entristecer-se e a angustiar-se. Disse-lhes então: “A minha alma está
numa tristeza mortal”» (Mc 14, 34).
O
Verbo de Deus diz-se e encarna no íntimo do que somos, aí mesmo onde
precisamos de ser tocados e salvos. Relembremos esta passagem, por
demais sugestiva, junto ao túmulo de Lázaro: «Ao vê-la a chorar – a
Maria de Betânia – e os judeus que a acompanhavam a chorar também, Jesus
suspirou profundamente e comoveu-se. Depois perguntou: “Onde o
puseste?”. Responderam-lhe: “Senhor, vem e verás”. Então Jesus começou a
chorar. Diziam os judeus: “Vede como era seu amigo!”» (Jo 11, 33-36).
Certamente
o Menino chorara ao nascer, como é próprio de quem nasce neste mundo.
Depois compartilhou daquele choro de Betânia, junto do túmulo do seu
amigo Lázaro. Fixemos o passo evangélico, para compreendermos algo dos
sentimentos de Deus agora, diante de tantos sepulcros materiais e
anímicos que não faltam por esse mundo além e aquém.
Começa
por ser assim, encarnando, para se fazer realmente nosso. É desta
companhia absoluta que arranca depois a ressurreição, refazendo-nos como
inteiramente seus. O Verbo divino proferido em Cristo impregna de
dentro toda a carne do mundo. Toma para si o que nos faz sofrer para nos
preencher da vida que só com Deus triunfa. O Natal é o princípio da
Páscoa, que nunca aconteceria doutro modo.
Quando daqui a pouco genufletirmos ao dizer «e encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem»
coincidamos inteiramente com a verdade do Natal de Cristo. Com a
consequência espiritual e a repercussão que há de ter na nossa relação
com tudo. Não podemos alhear-nos do que Deus tomou para si, isto é, da
fragilidade humana que precisa de ser acompanhada e assim mesmo salva.
Para que o Natal continue, também através de nós, Corpo de Cristo
alargado no mundo.
Peçamos à
Virgem Mãe que nos ensine o que Ela mesmo aprendeu e nos ofereceu com o
seu pleno assentimento. Peçamos a São José que nos ensine a guardar o
mistério da humildade de Deus, como ele tão exemplarmente o fez.
Aprendamo-lo e pratiquemo-lo para que a encarnação do Verbo se propague
sempre.
Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2021
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
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