quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Homilia na Solenidade da Imaculada Conceição


Sempre e só por Cristo, como em Maria foi 


Celebramos a Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, Padroeira de Portugal e sempre o fazemos com uma nota especial de adesão e afeto, que ultrapassa a indicação do calendário e as explicações mais correntes.
Certamente que mantemos recordações familiares, eclesiais e até nacionais que se avivam neste dia. É bom mantê-las e agradecê-las, por sinalizarem a presença da Mãe de Jesus na nossa vida, pessoal e coletiva. Também porque marcam o que em nós subsiste de melhor, em termos de aspiração à verdade, à bondade e à beleza mais perfeitas, como na Imaculada Conceição se apresentam e oferecem.
Aspiração que mantemos e nos mantém a nós, para que nada nos desvie do ideal nela atingido e tudo o que houver a corrigir se corrija – em nós, na Igreja e no mundo – para o manter vivo e nos refazer a todos. Lembre-se, a propósito, que a declaração de Nossa Senhora da Conceição como Padroeira de Portugal é do tempo da restauração da independência, como que apelando a uma restauração mais alta, que só na virtude se consegue. E assim mesmo a tomaram então alguns, como foi o caso do Padre António Vieira, aqui perto nascido.
É algo de forte e envolvente, como é próprio da fé teologal, dom divino que nos abre os olhos da alma para a realidade completa das coisas, como são ou hão de ser. Das coisas e sobretudo das pessoas, ligando-nos indissoluvelmente a Jesus como nosso Cristo e a Maria como sua e nossa Mãe.

Abeiremo-nos pois da Virgem Santa Maria, no mistério da sua Imaculada Conceição
. Façamo-lo a partir das palavras garantidas que a Liturgia nos oferece, tal como as ouviremos no prefácio desta Missa:
Dirigindo-se a Deus Pai, enuncia deste modo o essencial e o porquê da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria: «Vós a preservastes de toda a mancha do pecado original, para que, enriquecida com a plenitude da vossa graça fosse a digna Mãe do vosso Filho». 
Mancha do pecado original é a triste mácula que como humanidade nos ensombra a presença de Deus, porque que resistimos a aceitá-Lo como única fonte de vida verdadeira. O trecho que ouvimos no Génesis representa esta triste realidade, que nos esconde de Deus e nos diminui a todos. 
Mas Deus não desistiu de nós. A antiga história bíblica – valendo também como tipo da inteira história humana – ilustra em drama constante e tragédia vária a persistência da primeira culpa em sucessivas descendências. Deus a formar um povo que fosse finalmente seu e o povo a trocá-lo por deuses irreais ou ídolos mais à mão.
Por fim, num fim que foi também início, Deus recriou o mundo para que nele aparecesse uma humanidade nova. A terra recriada foi Maria, na sua Imaculada Conceição. Nela pôde nascer o Homem novo, Jesus Cristo, plenamente de Deus para Deus e inteiramente de Deus para nós. Deus criou Maria assim, para que nela renascesse o mundo em forma de Cristo. De Cristo, “por quem todas as coisas foram feitas”, como professamos na fé. De Cristo, em quem todas são refeitas, com o sim imaculado de Maria.  
A primeira concretização deste desígnio foi Ela própria, por graça do Filho que teria. Por isso o prefácio dirá depois, sempre dirigido a Deus Pai: «Dela, Virgem puríssima, devia nascer o vosso Filho, Cordeiro inocente que tira o pecado do mundo». Havia um pecado a vencer, cumprindo o aviso feito à serpente, como ouvimos no Génesis: «Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Esta te esmagará a cabeça…» A descendência da mulher é Cristo, que de Maria tomou uma humanidade incólume e assim mesmo a restituiu a Deus, qual cordeiro que no templo se imolasse.

Irmãos caríssimos, daqui renascemos nós, enquanto Igreja, Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo
. Maria, a Filha de Sião, resumia em si a herança antiga, personificando um povo inteiro que finalmente dissesse “sim” a Deus, como a ouvimos responder na Anunciação. Foi tão plena a graça que recebeu como perfeita foi a correspondência que lhe deu. Assim nela incarnou o Filho eterno, que connosco partilhou a vida que trazia e nos uniu a si como um só Corpo. Corpo animado pelo Espírito filial de Cristo, novo templo do Espírito também.
À verdade de Maria Imaculada corresponderá a santidade da Igreja, a partir de Deus, sempre e só de Deus. Oiçamos ainda o prefácio: «Nela destes início à santa Igreja, esposa de Cristo, sem mancha e sem ruga, resplandecente de beleza e santidade…. Vós a destinastes, acima de todas as criaturas, a fim de ser, para o vosso povo, advogada da graça e modelo de santidade».
Verificamos o facto de Deus no facto de Cristo, como pela Imaculada aconteceu. Como na primeira criação, assim na nova criação de tudo em Cristo, desde a Anunciação, tão discretamente também. Facto admirável que nos responsabiliza a nós, para sermos santos e irrepreensíveis diante de Deus, como na caridade diante de todos. 
Porque o mundo não está como Deus o quer. Vale-nos o mesmo Deus, que não desiste de o recriar em Cristo. Celebrar hoje a Imaculada Conceição de Maria, é também tomá-la em correspondência efetiva à graça batismal que recebemos, como Ela correspondeu à pleníssima graça, que a criara sem mancha.
E assim diremos que sim a Deus, para contar connosco em todas as fronteiras da vida, para que a ninguém falte o que Deus quer dar através de nós. O sim de Maria deu-nos Cristo a todos, o sim da nossa parte O dará também. Olhemos para Maria, da Anunciação ao Presépio, do Presépio a Caná, de Caná à Cruz e da Cruz ao Céu: em tudo veremos o que havemos de ser com Ela e o que havemos de ser para os outros, dando Cristo a cada um, desamparado ou aflito que esteja, no corpo ou no espírito. Imaculada significa completamente de Deus e para Deus, em coincidência perfeita de vontade e ação, como connosco há de ser. Celebrar a Imaculada é comprometermo-nos a nós, em tudo o que importe à purificação da Igreja, para bem dum mundo de que Deus não desiste.  
Como gerou a Cristo, também Maria nos acompanha agora, pois nos recebeu como filhos ao pé da cruz: «Eis aí o teu filho», disse-lhe o Crucificado, indicando o discípulo amado, que ali também éramos. E Maria aceita-nos, para nos ensinar a cumprir a vontade recriadora de Deus. Assim continuará Cristo a salvar o mundo. O grande mundo onde havemos de caber todos, sem que nada impeça a plena realização de cada um, pessoa ou povo que seja. Um coração imaculado é um coração sem fronteiras.    
Guarda-nos São José, esposo virginal de Maria, que dela cuidou e de Jesus. São José, a quem o Papa Francisco providencialmente dedicou o ano que hoje se conclui, assinalando uma companhia que nenhum tempo esgota. Testemunha e guardião das maravilhas de Deus em Maria, sê-lo-á também das que Deus realizará em nós. Sempre e só por Cristo, como em Maria foi.

 
Sé de Lisboa, 8 de dezembro de 2021

 
+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Patriarcado de Lisboa

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