Sempre e só por Cristo, como em Maria foi
Celebramos a Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, Padroeira de Portugal
e sempre o fazemos com uma nota especial de adesão e afeto, que
ultrapassa a indicação do calendário e as explicações mais correntes.
Certamente
que mantemos recordações familiares, eclesiais e até nacionais que se
avivam neste dia. É bom mantê-las e agradecê-las, por sinalizarem a
presença da Mãe de Jesus na nossa vida, pessoal e coletiva. Também
porque marcam o que em nós subsiste de melhor, em termos de aspiração à
verdade, à bondade e à beleza mais perfeitas, como na Imaculada
Conceição se apresentam e oferecem.
Aspiração
que mantemos e nos mantém a nós, para que nada nos desvie do ideal nela
atingido e tudo o que houver a corrigir se corrija – em nós, na Igreja e
no mundo – para o manter vivo e nos refazer a todos. Lembre-se, a
propósito, que a declaração de Nossa Senhora da Conceição como Padroeira
de Portugal é do tempo da restauração da independência, como que
apelando a uma restauração mais alta, que só na virtude se consegue. E
assim mesmo a tomaram então alguns, como foi o caso do Padre António
Vieira, aqui perto nascido.
É
algo de forte e envolvente, como é próprio da fé teologal, dom divino
que nos abre os olhos da alma para a realidade completa das coisas, como
são ou hão de ser. Das coisas e sobretudo das pessoas, ligando-nos
indissoluvelmente a Jesus como nosso Cristo e a Maria como sua e nossa
Mãe.
Abeiremo-nos pois da Virgem Santa Maria, no mistério da sua Imaculada Conceição. Façamo-lo a partir das palavras garantidas que a Liturgia nos oferece, tal como as ouviremos no prefácio desta Missa:
Dirigindo-se
a Deus Pai, enuncia deste modo o essencial e o porquê da Imaculada
Conceição da Virgem Santa Maria: «Vós a preservastes de toda a mancha do
pecado original, para que, enriquecida com a plenitude da vossa graça
fosse a digna Mãe do vosso Filho».
Mancha
do pecado original é a triste mácula que como humanidade nos ensombra a
presença de Deus, porque que resistimos a aceitá-Lo como única fonte de
vida verdadeira. O trecho que ouvimos no Génesis representa esta triste
realidade, que nos esconde de Deus e nos diminui a todos.
Mas
Deus não desistiu de nós. A antiga história bíblica – valendo também
como tipo da inteira história humana – ilustra em drama constante e
tragédia vária a persistência da primeira culpa em sucessivas
descendências. Deus a formar um povo que fosse finalmente seu e o povo a
trocá-lo por deuses irreais ou ídolos mais à mão.
Por
fim, num fim que foi também início, Deus recriou o mundo para que nele
aparecesse uma humanidade nova. A terra recriada foi Maria, na sua
Imaculada Conceição. Nela pôde nascer o Homem novo, Jesus Cristo,
plenamente de Deus para Deus e inteiramente de Deus para nós. Deus criou
Maria assim, para que nela renascesse o mundo em forma de Cristo. De
Cristo, “por quem todas as coisas foram feitas”, como professamos na fé.
De Cristo, em quem todas são refeitas, com o sim imaculado de Maria.
A
primeira concretização deste desígnio foi Ela própria, por graça do
Filho que teria. Por isso o prefácio dirá depois, sempre dirigido a Deus
Pai: «Dela, Virgem puríssima, devia nascer o vosso Filho, Cordeiro
inocente que tira o pecado do mundo». Havia um pecado a vencer,
cumprindo o aviso feito à serpente, como ouvimos no Génesis:
«Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e
a descendência dela. Esta te esmagará a cabeça…» A descendência da
mulher é Cristo, que de Maria tomou uma humanidade incólume e assim
mesmo a restituiu a Deus, qual cordeiro que no templo se imolasse.
Irmãos caríssimos, daqui renascemos nós, enquanto Igreja, Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo.
Maria, a Filha de Sião, resumia em si a herança antiga, personificando
um povo inteiro que finalmente dissesse “sim” a Deus, como a ouvimos
responder na Anunciação. Foi tão plena a graça que recebeu como perfeita
foi a correspondência que lhe deu. Assim nela incarnou o Filho eterno,
que connosco partilhou a vida que trazia e nos uniu a si como um só
Corpo. Corpo animado pelo Espírito filial de Cristo, novo templo do
Espírito também.
À verdade de
Maria Imaculada corresponderá a santidade da Igreja, a partir de Deus,
sempre e só de Deus. Oiçamos ainda o prefácio: «Nela destes início à
santa Igreja, esposa de Cristo, sem mancha e sem ruga, resplandecente de
beleza e santidade…. Vós a destinastes, acima de todas as criaturas, a
fim de ser, para o vosso povo, advogada da graça e modelo de santidade».
Verificamos
o facto de Deus no facto de Cristo, como pela Imaculada aconteceu. Como
na primeira criação, assim na nova criação de tudo em Cristo, desde a
Anunciação, tão discretamente também. Facto admirável que nos
responsabiliza a nós, para sermos santos e irrepreensíveis diante de
Deus, como na caridade diante de todos.
Porque
o mundo não está como Deus o quer. Vale-nos o mesmo Deus, que não
desiste de o recriar em Cristo. Celebrar hoje a Imaculada Conceição de
Maria, é também tomá-la em correspondência efetiva à graça batismal que
recebemos, como Ela correspondeu à pleníssima graça, que a criara sem
mancha.
E assim diremos que sim
a Deus, para contar connosco em todas as fronteiras da vida, para que a
ninguém falte o que Deus quer dar através de nós. O sim de Maria
deu-nos Cristo a todos, o sim da nossa parte O dará também. Olhemos para
Maria, da Anunciação ao Presépio, do Presépio a Caná, de Caná à Cruz e
da Cruz ao Céu: em tudo veremos o que havemos de ser com Ela e o que
havemos de ser para os outros, dando Cristo a cada um, desamparado ou
aflito que esteja, no corpo ou no espírito. Imaculada significa
completamente de Deus e para Deus, em coincidência perfeita de vontade e
ação, como connosco há de ser. Celebrar a Imaculada é comprometermo-nos
a nós, em tudo o que importe à purificação da Igreja, para bem dum
mundo de que Deus não desiste.
Como
gerou a Cristo, também Maria nos acompanha agora, pois nos recebeu como
filhos ao pé da cruz: «Eis aí o teu filho», disse-lhe o Crucificado,
indicando o discípulo amado, que ali também éramos. E Maria aceita-nos,
para nos ensinar a cumprir a vontade recriadora de Deus. Assim
continuará Cristo a salvar o mundo. O grande mundo onde havemos de caber
todos, sem que nada impeça a plena realização de cada um, pessoa ou
povo que seja. Um coração imaculado é um coração sem fronteiras.
Guarda-nos
São José, esposo virginal de Maria, que dela cuidou e de Jesus. São
José, a quem o Papa Francisco providencialmente dedicou o ano que hoje
se conclui, assinalando uma companhia que nenhum tempo esgota.
Testemunha e guardião das maravilhas de Deus em Maria, sê-lo-á também
das que Deus realizará em nós. Sempre e só por Cristo, como em Maria
foi.
Sé de Lisboa, 8 de dezembro de 2021
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Patriarcado de Lisboa
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