sábado, 24 de dezembro de 2022

Homilia da Missa da Noite de Natal

 

 

Guardando de noite os rebanhos…

Nesta celebração em que felizmente estamos, permiti que insista em dois pontos essenciais, para que o Natal nos continue a surpreender: primeiro, eram pastores, os chamados ao Presépio; segundo, era de noite que tal acontecia e é de “noite” que continua a acontecer – mesmo que seja dia. Fixemo-nos na frase evangélica: «Havia naquela região uns pastores que viviam nos campos e guardavam de noite os rebanhos.»

É certo que a temos na memória e não a esquecemos nos nossos presépios, onde não faltam pastores e ovelhas junto do Menino recém-nascido. Mas também aqui se verifica a perenidade do que nos foi transmitido.

Lembremos que se tratava de pastores, gente pobre e pouco conceituada na altura, vivendo no campo e tratando de animais. Mas lembremos igualmente que o próprio Deus se revelara na tradição bíblica como “pastor” do seu povo; e mesmo Jesus se apresentou depois como o “bom pastor”. Bom pastor, com todas as referências que faz ao conhecimento das suas ovelhas, uma a uma, à procura das que se desgarrem do rebanho e à defesa de todas, face a qualquer agressão que surja.

Ainda que pobres de muitas pobrezas, ou exatamente por isso, eram pastores os que ouviram o anúncio angélico. E não foi certamente por acaso, antes requerendo alguma coincidência na atitude que devemos ter. Aqueles pastores dos arredores de Belém faziam-se parábola do que ali sucedia – de Deus para o mundo e do mundo para Deus.

Também aqui as personagens evangélicas se tornam exemplares e motivadoras para nós. O anúncio é dirigido aos que guardavam rebanhos no campo. – Não dirá isto alguma coisa sobre a qualidade dos destinatários, precisamente os que hoje guardam e cuidam dos outros?!

Fica a pergunta, mas adianto alguma resposta. Estou convicto de que agora mesmo, neste ano da graça de 2022, o Natal está a ser muito especialmente vivido por quem se preocupa com os outros e os acompanha e protege. Seja em situações de guerra aberta, como acontece na devastada Ucrânia e noutras partes do mundo; seja em situações de guerra surda, que endurece os corações onde tudo afinal começa, ou se resolve. Seja como for, o Natal acontecerá de verdade onde houver quem se disponha a cuidar de quem precisa.

É assim que a nossa cidade tem esta noite tantos Presépios quantos os lugares e situações em que haja bons pastores dos outros: em casas, hospitais ou mesmo ruas, onde o Menino nos espera em quem carece de algo, física ou espiritualmente que seja.

É bom assinalar o Natal com figurações a propósito, que lembrem o que aconteceu e festejem o que nos foi dado com o nascimento de Jesus. É indispensável que o celebremos, como estamos a fazer aqui, para agradecer a Deus a salvação que assim começou, tão esperada que fora – e continua a ser aonde o seu anúncio ainda não chegou, ou já foi esquecido. Mas tudo isto se há de tornar em missão, concreta e caso e caso, alargando o cuidado daqueles pastores de antanho pelos rebanhos que ali guardavam, noite adentro.

Também esta é uma referência a reter e muito a sério. Coincide bem com o modo de ser divino, que das trevas fez brilhar a luz e mais se manifesta no recôndito dos corações do que nos clarões que estonteiam.

Assim no relato da criação, quando “a luz foi feita”. Assim com Abraão, quando Deus lhe levantou os olhos para as miríades de estrelas que pontuavam de luz o céu noturno. Assim com Moisés, quando saiu do Egito na primeira Páscoa que foi. Assim, Bíblia fora, até àquela noite em que Jesus revelou a Nicodemos o porquê do seu Natal e de tudo o mais: «Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que crê nele não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16). Tudo prenúncio da noite em que do sepulcro transbordou a vida do Ressuscitado!

Não foi algo de meramente circunstancial, aquela noite em Belém. Trata-se, isso sim, duma condição para vivermos o Natal de Cristo e quanto ele nos traz. Trata-se de acolher o Emanuel, que quer dizer “Deus Connosco”, estando nós também com Ele, no seu modo de ser e acontecer, geralmente discreto, muito discreto mesmo.

Requer um anoitecer de tudo quando nos distraia. Requer disponibilidade e concentração totais, desfazendo no nosso espírito quanto não seja Deus e a sua manifestação em Cristo: palavra, gesto e rosto, pouco a pouco desvendado.

Aliás, Jesus também rezava de noite, como neste passo evangélico: «Naqueles dias, Jesus foi para o monte fazer oração e passou a noite a orar a Deus» (Lc 6, 12). Realizava na terra o diálogo que eternamente mantém com o Pai. Diálogo oculto aos nossos olhos, ainda que nos chegue pelo Espírito que derramam.

É um ponto importante e uma advertência séria. Importante, porque as coisas, e sobretudo as pessoas, são muito mais do que parecem e só com muita concentração lhes captamos a verdade. Assim em relação aos outros e sobretudo em relação a Deus.

E uma advertência séria, pois corremos o risco de viver exteriormente estes dias, distraídos do essencial que nos oferecem. Do que oferecem, sim, mas apenas a quem anoitece os olhos para vislumbrar o Presépio.

Creio que, pastoralmente falando, é uma das maiores urgências que temos, esta de nos educarmos para uma atitude contemplativa, que feche por um tempo os olhos do corpo e abra os da alma para a luz que desponta.

Não é sem preparação e trabalho que nos tornaremos capazes de adorar a presença sacramental de Jesus eucarístico, qual Natal continuado, como cantou São João da Cruz: «Bem eu sei a fonte que mana e corre, embora seja noite […] E esta eterna fonte está escondida em este vivo pão a dar-nos vida, embora seja noite».

Convenhamos que, se “orar é falar com Deus”, temos muito mais para ouvir do que para dizer… E mais para ver com os olhos da alma do que apenas com os do corpo, tão distraídos geralmente. Se aprendermos isto em relação a Deus, também o faremos em relação aos outros, realmente ouvidos e verdadeiramente vistos. Os outros, em quem o Natal de Cristo continua, à espera de quem o divise na noite.

Talvez por isso, entre as várias Missas de Natal, seja esta particularmente tocante. Toda a tradição mística insiste no motivo, da “noite”, que é necessário fazer em nós, para que Deus amanheça ao nosso olhar profundo. Logo São Paulo, que nos alertou para a necessidade de passarmos do visível ao invisível e finalmente entrevermos o que importa: «Não olhamos para as coisas visíveis, mas para as invisíveis, porque as visíveis são passageiras, ao passo que as invisíveis são eternas» (2 Cor 4, 18).

E o próprio Cardeal Newman, hoje nos altares, foi nesses termos que cantou a sua conversão, caminhando como os pastores ao encontro do Menino Deus: «Luz terna, suave, no meio da noite, leva-me mais longe…» Assim foi e lá nos espera, em Natal alcançado.

Prossigamos então, neste caminho aberto, mesmo quando obscuro. Quando desejamos um “santo” Natal, confessamos que é de Deus e necessariamente ao seu modo. Como foi então e há de ser agora. – Como acontecerá com a Jornada Mundial da Juventude, pela qual sempre rezamos, e será “Natal” para muita gente, mesmo em agosto, compartilhando Cristo vivo pelas mãos da Virgem Mãe!


Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2022

+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Patriarcado de Lisboa

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